O Fórum AWID acontece a cada 4 anos em diferentes cidades ao redor do mundo. Este ano ele foi organizado na Costa do Sauípe, em Salvador, com o tema Futuros Feministas: Construindo Poder Coletivo em prol dos Direitos e da Justiça. Seus objetivos foram:
• Celebrar as conquistas dos últimos 20 anos alcançadas por diversos movimentos sociais e analisar criticamente os aprendizados que podemos levar adiante
• Avaliar nossa realidade atual para identificar as oportunidades e ameaças no que tange à promoção dos direitos das mulheres e de outros grupos oprimidos
• Buscar estratégias para fortalecer a solidariedade e o poder coletivo entre os diversos movimentos
• Inspirar, energizar e renovar a força e o propósito
Cerca de 1800 feministas do mundo inteiro participaram do evento.
O papel do Fundo ELAS
O Fundo ELAS integrou o comitê de planejamento do Fórum e embarcou em uma jornada de dois anos para refletir coletivamente sobre o estado atual da luta feminista e criar a programação do Fórum.
O comitê de planejamento e a programação refletiram a diversidade dos movimentos feministas. A interseccionalidade foi central para as organizadoras, que se puseram sob os auspícios de Audre Lorde: ´Não existe uma luta de um só tema, porque não vivemos vidas de um só tema´. A programação e as participantes representaram essa diversidade, de mulheres negras e o Fórum Feminismos Negros, LGBQs, mulheres trans e pessoas intersex a mulheres indígenas, agricultoras e mulheres com deficiência, etc. Refletiu ainda a variedade de causas (direitos das trabalhadoras domésticas, das prostitutas, ativismo ambiental, direitos sexuais e reprodutivos, etc) e de formas de ativismo (teatro, ação direta, lobby, sindicatos, etc). Ao projetar a programação, o objetivo foi representar os feminismos através da multiplicidade de suas causas. A logo do Fórum buscou representar isso: como a interseção de todos os fios constrói a tela do feminismo.
Entretanto, se as causas podem ser singulares, as identidades não são. Nós somos únic@s, singulares e múltipl@s ao mesmo tempo. Nesse sentido, a logo também representa cada um e cada uma de nós: como nossas identidades interseccionais constroem a tela em constante transformação que nós somos. Esse encontro também implicou reconhecer as dinâmicas de poder desiguais entre estas identidades, os privilégios que acompanham algumas delas e o trabalho ativo necessário para desconstrui-los. Isso foi planejado por meio da criação de espaços separados e sessões interseccionais sobre descolonizar os feminismos.
Amalia Fischer, coordenadora geral do Fundo ELAS, lembrou com carinho como essas singularidades e multiplicidades se reuniram durante a festa de sábado, com mulheres de tantos países e causas feministas falando, bebendo e dançando juntas, fazendo política de uma maneira diferente.
O que aprendemos durante as sessões
• Financiamento: Internacionalmente, mobilizar recursos para os direitos humanos tem sido um desafio para o Brasil. Somos vistos como um país com direitos humanos consagrados pela Constituição, um PIB elevado e uma economia em crescimento. Mas, como se verifica, a realidade é bem diferente. Apesar de o PIB brasileiro ser alto, o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta. Ele ocupa a 20ª posição na lista de 176 países que mede as desigualdades sociais (índice GINI). Não somos uma economia em crescimento: a economia brasileira está em recessão há dois anos, e segue encolhendo. Pessoas estão perdendo seus empregos e os direitos dos trabalhadores estão sendo retirados. Nossa democracia não é forte como pensávamos, como o recente golpe mostra. Há muita violência contra a mulher, pessoas negras e ativistas.
Estar no Fórum AWID e compartilhar essa realidade com muitos financiadores de todo o mundo foi importante porque ainda é um desafio para nós fazermos uma mudança no cenário de financiamento e mobilizar mais recursos de fora do Brasil para os direitos das mulheres.
• Amalia Fischer participou de dois painéis sobre financiamento dos movimentos feministas no âmbito do Núcleo Mobilização Feminista de Recursos, discutindo particularmente parcerias com o setor privado. No primeiro painel sobre tendências de financiamento, ela comentou sobre a tendência de aumento dos investimentos do setor privado. Amalia destacou que as empresas têm uma responsabilidade social devido ao fato de terem fins lucrativos e estarem gerando custos sociais onde operam. Ela explicou que, ao estabelecer parcerias com um financiador do mundo corporativo, é essencial entrar com uma visão clara dos nossos valores e ética, do que é negociável e do que não é. Amalia argumentou que é possível colaborar com certas empresas mas que os valores e ética de outras impossibilita qualquer tipo de colaboração. O processo de negociação com entidades privadas não deve ser apenas sobre o que as ONGs podem fazer com os recursos, mas deve também incluir uma reflexão sobre as mulheres que atuam na entidade. Quais são suas condições de trabalho? Há consciência entre as mulheres em posições de liderança sobre as condições de mulheres que não tiveram as mesmas oportunidades? Algumas dessas mulheres podem ser aliadas e devemos busca-las. A coordenadora geral do Fundo ELAS também sublinhou que nem todas as organizações de mulheres devem trabalhar em parceria com empresas, pois isso pode contrariar seus objetivos ou métodos que escolhem usar.
Durante o segundo painel ´Colaboração intersetorial: Oportunidades e desafios´, Amalia falou de parcerias com empresas como uma estratégia a longo prazo, ilustrando com a relação entre o Fundo ELAS e o Instituto Avon. Ela destacou que essas parcerias não devem ser transações isoladas, mas trata-se de trabalhar conjuntamente para criar transformações sociais. Os maiores benefícios da construção de relacionamentos de longo prazo não são necessariamente o acesso imediato ao financiamento, mas podem incluir o acesso a novas redes para visibilidade e outras oportunidades.
´Foi muito importante trabalharmos juntos, em cocriação, para criar o projeto com o Instituto Avon´, explicou Amalia. ´Nós não enviamos uma proposta fechada, nós trabalhamos na proposta com o Instituto Avon até chegarmos em um consenso´. Para Amalia, a parceria também funcionou porque o Instituto Avon tem abordagem inovadora em seus programas de investimento social, pois promove uma abordagem integrada para acabar com a violência contra as mulheres: trabalhando com sistemas de justiça, criando parcerias público- privadas, envolvendo tanto os governos federal e locais como as ONGs de mulheres. Os resultados foram significativos e ilustram o conceito da Win-Win Coalition: ´Criamos uma relação de confiança e alcançamos nossos objetivos, agregando valor à marca do Instituto AVon, enquanto o Fundo ELAS também ganhou nova visibilidade´.
• O Fórum Feminismos Negros: O Fórum AWID começou com o Fórum Feminismos Negros. Foi um primeiro e extremamente importante momento, já que os movimentos feministas não existem isoladamente do resto da sociedade e a discussão sobre raça não foi tão visível como deveria ter sido no passado. Houve uma participação recorde de feministas negras que foi crucial, especialmente no Brasil, onde não pode haver feminismo sem combate ao racismo.
Feministas negras da
CRIOLA e do
Geledés lançaram o relatório
Os direitos humanos das mulheres negras no Brasil, sobre, entre outros assuntos, feminicídios de mulheres negras no país. O estudo traz luz à violência enfrentada por mulheres negras e mostra como a interseção de marcadores sociais de diferença como gênero, raça, classe e sexualidade desproporcionalmente ampliam os riscos de violência. A taxa de violência contra mulheres negras segue crescendo de forma alarmante e nós convidamos todos e todas a lerem o relatório, disponível
aqui, e mobilizar atenção internacional e solidariedade feminista para o tema.
• Autocuidado e proteção e cuidado com a comunidade: O Fundo ELAS desenvolve um projeto pelo fim da violência contra ativistas e a proteção de defensoras dos direitos das mulheres. Os diferentes aspectos do autocuidado entre ativistas foram discutidos: proteção, amor próprio, autocuidado e cuidado com a comunidade assim como bem estar no ambiente de trabalho.
Embora o autocuidado seja uma pauta feminista há tempos, com Audre Lorde e bel hooks tendo definido o autocuidado como um ato político, a aplicação prática desse princípio na esfera ativista é ainda bastante recente. Os esforços tradicionais foram direcionados para programas de proteção de ativistas para feministas sob ameaças. Uma nova abordagem consiste em passar da segurança pessoal para a segurança ´integrada´ ou ´holística´, abrangendo a segurança coletiva, individual, organizacional e digital, autocuidado, cuidados comunitários, bem-estar no trabalho etc.
Muitas participantes do evento concordaram que a base para o autocuidado era o amor próprio. Hope Chigudu, uma das painelistas, escreveu: ´O amor próprio é onde o autocuidado começa. Complementar a visão e a presença no envolvimento e engajamento com outras pessoas, é a capacidade de autocuidado - de ver e estar presente para si mesmo. No entanto, muitos de nós fomos educados para amar os outros, mas não nós mesmos. Amar o eu não tem nada a ver com ser egoísta, egocêntrico ou absorvido em si mesmo. Isso significa que você aceita a si mesmo como você é e que aceita a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento, crescimento e felicidade. Isso significa que porque você tem o suficiente para si mesmo, você também tem algo para dar aos outros´.
A conversa sobre autocuidado em um espaço digital de uma perspectiva feminista jovem desencadeou muitas percepções para K.K. Verdade, coordenadora executiva do Fundo ELAS. Foi sobre segurança e privacidade online a partir de uma perspectiva íntima, e fez com que ela percebesse que precisamos cuidar de nossa segurança online com o mesmo cuidado e atenção com que cuidamos da nossa integridade física.
Foi uma descoberta; as moderadoras revelaram a ideia de que você pode estar sozinha em uma sala, só com você e seu computador e ainda estar em risco. As pessoas podem estar envolvidas em bullying online, campanhas de difamação, vigilância, ataques de spyware, etc. A sessão desencadeou uma autorreflexão sobre a nossa prática online e como nos mantermos seguros, mas também sobre a importância de falar com as pessoas ao nosso redor, especialmente com meninas, sobre segurança online.
Alicia Garza da campanha
Black Lives Matter enfatizou a importância do cuidado com a comunidade. Ela explicou que dentro da lógica capitalista, o autocuidado é muitas vezes entendido como uma tarefa pessoal, que pode ser cumprida através de vários atos de consumo (ginásio, psicólogo, alimentos integrais etc.). Ela e várias ativistas enfatizaram que o autocuidado deve ser entendido como uma tarefa coletiva, emocionalmente, mas também materialmente.
Estendendo este pensamento sobre o cuidado coletivo e partindo da base de que as ameaças são muitas vezes dirigidas a comunidades inteiras, o Fundo de Ação Urgente apoiou recentemente programas que visam fortalecer a segurança de grupos inteiros por meio da auto-organização. Um exemplo revelador veio do
Red Umbrella Fund, da Turquia, com um projeto com o qual a segurança da comunidade de prostituas transexuais em Ancara foi perceptivelmente melhorada através da auto-organização. O processo começou com uma consulta para definir as ameaças enfrentadas e definir como seria a segurança para a comunidade, seguido de um workshop para fomentar a confiança dentro do grupo e elaborar estratégias sobre a abordagem. Esses esforços já aumentaram a segurança percebida pelas participantes ao destacar experiências compartilhadas e criar laços entre as mesmas. Prostitutas trans da comunidade então entraram em contato com várias instituições: o governo local, ONGs, abrigos locais e até mesmo a polícia local. Isto causou um efeito de dominó, gerando consciência sobre as ameaças enfrentadas pelas prostitutas trans dentro dessas instituições. O processo também capacitou os prostitutas para se engajar no ativismo, dando-lhes os contatos certos para relatar as questões, um sistema de apoio em que confiar e o know-how para buscar mudanças estruturais.
Do grupo de mulheres indígenas que se conectam através da natureza e da harmonização, à cura das mulheres migrantes na África do Sul através de canções e silêncio ou à ativista chinesa trocando conhecimento com ativistas mais velhas, não há forma para todas as receitas de autocuidado. As soluções de autocuidado e cura precisam ser adaptadas aos contextos locais através de conversas. Esses conceitos precisam ser descolonializados para restaurar a agência dos atores locais. Mpumi Zondi, do
AIR, African Institute for Integrated Responses to Violence against Women and Girls in South Africa (Instituto Africano de Respostas Integradas à Violência contra as Mulheres e as Meninas na África do Sul), destacou como era crucial descolonizar os cuidados e livrar-se do modelo de trauma ocidental, que não estava adaptado à experiência das mulheres que visitavam o centro. Elas redefiniram sua organização e oferta de cuidados através de consultas com as mulheres que frequentavam o centro, ONGs locais e estudiosos. Entre suas percepções estava que o aspecto disruptivo da noção ocidental de trauma não era adaptado às pessoas que viveram em constante desassossego, que a ideia do que "bem" significava era muito diferente de uma mulher para outra e que o modelo ocidental linear de recuperação não era adequado e ocultava o aspecto político do sofrimento: como se poderia esperar que se alguém se curasse num mundo dominado por um racismo estrutural invasivo? Como se poderia esperar que alguém expressasse a complexidade dessa opressão e como ela os afetou em sessões psicanalíticas de uma hora? Elas desenvolveram uma série de práticas de cura, inspiradas pelo que fazia sentido para as mulheres que visitavam o centro, e incluíram formas coletivas de cura. Elas contrataram curandeiras de fora do estabelecimento que trabalham em sua própria cura, porque argumentam que estamos todos feridos e que o ato de cura pertence a pessoas comuns. Elas organizaram ações políticas para apoiar suas visitantes, como protestos para que as crianças migrantes fossem aceitas nas escolas, porque as condições socioeconômicas são uma chave frequentemente ignorada para o bem-estar psicológico.
Hope Chigudu também enfatizou a importância do bem estar em organizações ativistas, espaços onde a ideia do autocuidado e do bem estar individual é frequentemente sacrificada em nome das mudanças coletivas buscadas. Hope explicou que devemos trabalhar para construir organizações com uma alma. Uma perspectiva feminista deve ser aplicada a todos os aspectos de uma organização, desde a contratação até o embarque, compartilhamento de informações, treinamento, orçamento, divisão de tarefas e responsabilidades ou o trabalho diário. O bem estar deve ser um assunto falado dentro da organização e financiado. As pessoas devem ter espaço para expor preocupações externas, avaliar e discutir coletivamente como se sentem no trabalho, ser capazes de criar rituais coletivos ao longo do dia e discutir e adaptar a maneira como a organização funciona.
O que aprendemos & nossos destaques:
• O Fórum foi uma experiência diferente para cada uma das três integrantes do Fundo ELAS que participaram do encontro - vários contextos e experiências resultando em diferentes interações e papéis. Para nossa integrante mais experiente, Amalia Fischer, foi uma experiência de doação: apresentar ativistas a outras ativistas, doadores a organizações de mulheres, compartilhar informação, conhecimento, orientações, apoiar quando houve um problema. Foi também a ocasião de se reconectar com antigas amigas e construir novas amizades.
KK participou pela segunda vez do Fórum AWID, mas era a primeira vez que participava como integrante de um fundo de mulheres. Ser do país anfitrião foi importante para que ela oferecesse hospitalidade feminista. Dar as boas vindas às pessoas, ajudando-as a se sentirem seguras, compartilhando dicas sobre lugares bonitos para visitar. Como o ELAS é o único fundo de mulheres no Brasil, ela também compartilhou muitas informações com ativistas estrangeiras sobre os direitos das mulheres no Brasil, explicando como as mulheres brasileiras estão lutando contra a discriminação e o conservadorismo e conectando-as aos movimentos de direitos das mulheres.
Para mim, Allison, membro mais novo experimentando seu primeiro fórum, assim como para as muitas outras feministas jovens presentes, estar pela primeira vez na estrada transversal de tantos cruzamentos significou repensar profundamente meu próprio ativismo, nossas abordagens, nossas prioridades e nossos preconceitos. Foi uma experiência de aprendizagem, questionamento, processamento. Experimentar o que o mundo poderia ser, como as relações entre as pessoas poderiam parecer se um futuro feminista se realizasse. De muitas maneiras, estava vendo uma utopia se materializar. Uma utopia na qual nos ouviremos uns aos outros, discutiremos, elaboraremos estratégias em direção a objetivos comuns ao mesmo tempo em que reconhecemos e falamos sobre nossas diferenças e o desequilíbrio de poder que essas diferenças trazem.
O Fórum abriu uma porta para sonhar com um futuro diferente, permitiu o encontro com novas aliadas para povoa-lo e encheu-nos todas com uma energia renovada para construir em direção a esse futuro.
• Construir a visão desse futuro foi um dos destaques da conferência para KK Verdade. Foi realmente inspirador ouvir as visões e sonhos de outras feministas de outras partes do mundo. Isso também revelou o estado diferente e as prioridades das lutas feministas em todo o mundo. O encontro das diferentes experiências e contextos das feministas pelo mundo abriu espaço para uma experiência e uma visão incrivelmente ricas. Ficou claro que construir utopias juntas é uma das melhores maneiras de recarregar nossas energias e alimentar a nossa paixão.
• Sentimos que a presença de arte ao longo do Fórum, através de músicas, danças, pinturas e desenhos, vídeos, etc., teve grande impacto no evento. Isso nos permitiu entrar mais contato com nossas emoções e sonhos, estar lá com nossos corações e corpos assim como com nossas mentes.
• Nós fomos inspiradas por como o espaço foi feito para essas emoções durante o fórum. Como desafiamos coletivamente o peso patriarcal das emoções reprimidas. As pessoas choravam durante os painéis, conversavam sobre seus sentimentos, abraçavam e beijavam. Isso também criou um imperativo de cuidar, de apoiar umas às outras. Significava estar plenamente presente, capaz de apoiar as participantes do fórum nos desafios que enfrentavam e oferecer ajuda no local onde ela era necessária. Essa abertura nos fez refletir sobre o fato de que o feminismo não é apenas sobre fazer ativismo, mas também questionar a maneira como o fazemos e apoiar-nos mutuamente nas lutas.
Próximos passos:
O fórum cumpriu sua promessa para o ELAS. Foi um momento crucial de avaliação e reflexão, bem como a oportunidade de estabelecer estratégias com outros atores do setor de financiamento. Estamos trabalhando em várias estratégias conjuntas com fundos de outras mulheres como resultado direto das conversas que tivemos durante o fórum. Fique ligado conosco para saber sobre essas novas iniciativas em breve!